Da natureza ao prato:
quando natural nem sempre é sinônimo de seguro
A corrida por alimentos mais naturais, com rótulos curtos e sem conservantes artificiais, impulsiona uma nova fronteira científica: os aditivos clean-label. O artigo “Clean-label alternatives for food preservation: An emerging paradigm” (Chauhan et al., 2024) investiga como compostos biológicos e extratos vegetais vêm sendo testados para substituir conservantes químicos. Entretanto, o estudo alerta que nem sempre o “natural” é isento de risco — e que a segurança toxicológica ainda é um território em construção.
Em uma época em que os consumidores demonstram crescente desconfiança em relação a nomes extensos e fórmulas químicas presentes nas embalagens, o movimento clean-label consolidou-se como uma tendência global de grande impacto. Essa corrente, que defende o uso de ingredientes de origem natural e facilmente reconhecíveis, vem transformando profundamente a maneira como a indústria de alimentos concebe a conservação e a estabilidade de seus produtos. O artigo de Chauhan et al. (2024) apresenta uma análise detalhada e abrangente desse novo paradigma, examinando tanto o potencial quanto os riscos associados às alternativas desenvolvidas para substituir os conservantes sintéticos convencionais.
O trabalho inicia-se discutindo as razões que explicam o êxito do conceito clean-label, destacando a crescente conscientização dos consumidores a respeito dos efeitos negativos que certos aditivos químicos podem causar, somada ao desejo coletivo por transparência e alimentação mais saudável. Entretanto, os autores salientam que, sob a perspectiva técnica, substituir um conservante sintético — cuja eficácia é comprovada e cujo perfil toxicológico foi amplamente estudado — por um composto natural representa um desafio complexo. Em muitos casos, o desempenho antimicrobiano e antioxidante dos ingredientes naturais mostra-se inconsistente, e ainda há escassez de dados robustos sobre seus efeitos cumulativos e de longo prazo no organismo humano.
Na sequência, Chauhan e colaboradores exploram um amplo conjunto de substâncias emergentes classificadas como “alternativas clean-label”, entre as quais se incluem bacteriocinas, enzimas antimicrobianas, óleos essenciais, peptídeos bioativos, extratos fenólicos e produtos fermentados. Esses compostos apresentam potencial para inibir o crescimento de fungos e bactérias, retardar processos de oxidação lipídica e prolongar a vida útil dos alimentos, muitas vezes sem comprometer características sensoriais, como sabor, aroma e aparência. Contudo, os pesquisadores alertam que, em matrizes alimentares mais complexas — como carnes processadas, queijos curados e molhos condimentados —, as interações químicas entre esses compostos naturais e componentes como proteínas, gorduras e sais podem reduzir significativamente sua eficácia.
Um dos pontos mais relevantes do artigo é o equilíbrio entre o otimismo e a prudência. Embora a pesquisa apresente evidências convincentes de que compostos naturais podem constituir alternativas viáveis, seguras e ambientalmente sustentáveis, os autores enfatizam que a ausência de dados toxicológicos detalhados representa um obstáculo expressivo. Diversos extratos vegetais empregados como conservantes não passam por ensaios de toxicidade aguda, subcrônica ou crônica, e há carência de estudos que avaliem suas interações metabólicas quando combinados com outros ingredientes alimentícios. Dessa forma, o conceito de “natural e seguro” é relativizado: um composto pode ser de origem natural e, ainda assim, apresentar toxicidade dependendo da dose administrada e da via de exposição.
Os autores também chamam atenção para os desafios regulatórios que acompanham essa transição. O ritmo acelerado da demanda de mercado, comparado ao avanço da pesquisa científica, cria um descompasso entre inovação e segurança. Em diferentes países, produtos classificados como clean-label chegam ao mercado baseados apenas em avaliações preliminares, em contraste com os rigorosos protocolos exigidos para a aprovação de conservantes sintéticos. Essa disparidade acende um alerta entre toxicologistas e agências regulatórias: como definir critérios consistentes para avaliar substâncias complexas, frequentemente compostas por dezenas de metabólitos bioativos distintos?
Outro aspecto analisado pelos autores diz respeito ao impacto ambiental e econômico da substituição dos aditivos sintéticos por compostos naturais. Apesar de o apelo “natural” sugerir sustentabilidade, a extração em larga escala de óleos e moléculas bioativas pode exercer pressão sobre ecossistemas vegetais e elevar significativamente os custos de produção. Assim, o estudo argumenta que o futuro mais promissor do movimento clean-label está na biotecnologia, por meio do uso de microrganismos e sistemas de fermentação capazes de sintetizar moléculas conservantes de maneira controlada, reprodutível e ecologicamente equilibrada.
Sob a ótica toxicológica, o artigo reforça a importância de abordagens integradas, combinando toxicologia clássica, biologia molecular e ecotoxicologia ambiental. A segurança de um aditivo não deve ser avaliada apenas em função de seus efeitos sobre o consumidor final, mas também considerando o impacto ambiental resultante de seu descarte ou transformação durante o processamento. O grande desafio é desenvolver conservantes que apresentem eficácia antimicrobiana, sejam biodegradáveis e mantenham um perfil de segurança compatível com os princípios de saúde pública e sustentabilidade.
Na conclusão, Chauhan et al. (2024) reconhecem que o movimento clean-label ultrapassa o status de tendência passageira: trata-se de uma mudança cultural e científica que integra ética, inovação e percepção social. No entanto, essa transição requer maturidade técnica e regulatória. A promessa de alimentos “livres de química” somente será concretizada quando os novos compostos forem submetidos ao mesmo rigor científico aplicado aos seus equivalentes sintéticos. A naturalidade, por si só, não garante inocuidade — e é justamente nesse ponto que a toxicologia desempenha papel central.
Assim, o estudo não apenas descreve uma tendência emergente, mas lança um desafio ético e científico: assegurar que o desejo por rótulos limpos e ingredientes naturais não comprometa a segurança alimentar. O verdadeiro “rótulo limpo”, concluem os autores, será aquele que equilibra transparência, inovação, sustentabilidade e responsabilidade científica, conciliando o avanço tecnológico com o bem-estar humano e ambiental.
CHAUHAN, K.; RAO, A. Clean-label alternatives for food preservation: an emerging trend. Heliyon, v. 10, n. 16, e35815, 2024.
Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2405844024118464
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Acesso em: 6 out. 2025.
Por: Giovanna da Silva Brito
